Estamira e a orquestração do mundo
Estamira desemboca no lixo das misérias humanas, da mentira, da canalhice, da vergonha. Ela é contra o maltrato, o descaso, a imoralidade, a falta humildade. Vive do lixo das almas, do lixo que não é de resto, mas do descaso, como ela diz. Do que as pessoas têm para cuidar, mas deixam ir.
O filme de Marcos Prado, premiado em diversos festivais de cinema, arremessa-nos aos delírios de consciência de Estamira, uma catadora de lixo iluminada com idéias e conceitos próprios, desencadeados por sofrimentos de sua vida acumulados. Mas o filme brilha pela intensidade dos depoimentos, pela captação das imagens, pelos recursos que trazem uma image granulada e dolorida, pela trilha sonora profundamente conectada com o sentimento de cada imagem, mas sobretudo pelo sentimento que o filme provoca em cada espectador. E é esse sentimento que merece ser vivido, pois cada um experimentará uma reação diferente à esta provocação.O mundo pára para ser orquestrado por Estamira, esta bruxa que não é perversa, mas pode ser má, justamente quando se preocupa em vestir seus companheiros pois a chuva se aproxima. E o vento que chega para varrer o chão levanta todos os lixos leves, que voam em cores e despregam desgovernados dos montes de lixo, e a chuva vem para diluir aquela atmosfera, inundar as superfícies, derreter numa só forma aquela degradação horrenda. E Estamira explica o chorume, do que é feito. Mais adiante, ela diz: "A vida é dura". Ela é, mas muito mais para uns do que para outros.
Suas expressões são conceitos recorrentes, ela é contra o trocadilho, aquelas situações trocadas, a realização em uma palavra da injustiça, ela define a mãe como o homem par e o homem como homem ímpar, para mim ela é dor pura do excesso de consciência de que tudo está errado e de que, por isso, não poderia haver Deus.
Seu rival é poderoso, seu rival foi potencializado por seu ex-marido, mas seu rival é ainda mais poderoso e mesmo com esta carne velha, esta camisa sanguínea, ela ainda dá conta de enfrentá-lo. E ela é contra a imoralidade, contra o descaso, o maltrato, a falta de humildade. Ela não é contra Deus, é contra os seres humanos que inventaram um Deus para poderem justificar sua maldade.
E a maldade está no filme em tantas formas, no que fizeram com ela, prostituindo-a, traindo-a, estuprando-a, drogando-a, não dando outra opção que não a de tirar seu sustento do lixão de Gramacho, criar seus filhos no lixão, mas também a maldade está no lixão que é a borda, o limite da sociedade, da cidade e da humanidade, nos hospitais psiquiátricos, nos valores trocados, na hipocrisia, descaso, canalhice, mentira.
Estamira está em todos os cantos, em todos nós e todos precisam de Estamira. Não sei de todos, mas eu preciso.