A cidade vai mudando bastante, sempre se ajeitando para a nova leva de turistas, mas também para o povo que foi se instalando por aqui. Vemos cada vez mais os asiáticos instalados, com seu automóvel, seu carrinho de bebê passeando, pois já não precisam trabalhar as 20 horas por dia que parece que trabalham. Até arranham melhor o espanhol com sotaque da Espanha, mesmo.
Setembro é uma época muito afortunada, pois o calor já arrefeceu, mas o frio ainda não deu as caras. Pode-se ir à praia, andar pelas calçadas marítmas, onde muitos homens se reúnem para pescar, e depois sentar à beira-mar, nos “chiringuitos” ouvindo músicas modernas.
Ontem, dia 11 de setembro, à parte da memória do ataque às torres gêmeas, na Catalunha se comemora o seu Dia Nacional, que é na verdade uma derrota para as tropas espanholas. Neste dia, esquerda e direita fazem discursos numa estátua que se encontra na Praça Urquinaona, levando coroas de flores. E a cidade dança a Sedetta, a dança tradicional da região.
O circuito cultural é realmente o que mais chama a atenção, exposições em diversos museus, num diálogo constante com a produção cultural mundial. A Caixa Fórum, que sempre traz boas exposições, apresenta um apanhado da obra do escultor inglês Henry Moore com toda a força das suas peças jacentes, do homem deitado que se apóia nos braços, mas que também retoma as imagens dos ingleses escondidos nos abrigos dentro dos canais do metrô durante a II Guerra Mundial, enfim, das figuras que são o essencial da forma. O poder da figura jacente é atribuído ao descobrimento da obra de mesma posição em Chichén Itza, no México, de origem maya-tolteca, que evoca sobretudo a força da permanência, da paciência, da solidez de quem vê os séculos passarem na segurança da sua posição.
Nos cinemas, além das milhares de salas dos filmes de sempre, também os filmes que de vez em quando aparecem para encantar com sutileza, verdade, estética e bom gosto. Three Times (“Tiempos de Amor, Libertad y Juventud”), do diretor taiwanes Hou Hsiao Hsien, é uma grande descoberta (aliás, prefiro muito mais as listas de filmes dos jornais brasileiros. Vejam uma amostra da sinopse: “1966, tiempo de amor. 1911, tiempo de libertad; 2005, tiempo de juventud”. Não existe menção a ano de produção, países co-produtores, atores, uma sinopse com mais informação, nem classificação/opinião do jornal). Trata-se de um filme das relações amorosas em três momentos da história da China e da dificuldade em equacionar estes atributos da vida, o amor, a liberdade e a juventude.
E vamos nos movendo para não criar limbo. Setembro é o mês da tradicional festa de Las Mercês, em que toda a cidade se prepara para os mais diversos ciclos culturais, concertos, festas de rua. Enquanto isso, vamos nos espremendo entre o que somos e o que não somos quando viajamos, e me vem o texto do Roberto da Matta:
“Quando se fica entre dois mundos, morre-se muitas vezes. Tantas quantas são as passagens de um lugar a outro. É quando descobre que o ‘entre’ também tem o seu lado negativo, revelando as perdas, contabilizando as divisões, assinalando as repatriações, indiciando pelos lutos malfeitos e por muitas saudades. Saudade de um lado e saudade do outro; e uma saudade nova, excepcional e inusitada do intersticio, da passagem, do meio-termo.
(...)
São esses sentimentos contraditorios de vida e de morte, de liberdade extremada e de perda que eu tenho experimentado nessa visita. É quando vejo que o pertencer é sempre relativo. Que a terra natal – a pátria ou mátria, como dizia o poeta Antonio Vieira – exige uma constante celebração de ritos patrióticos onde reafirmamos o nosso gosto de a ele pertencer, porque – quem sabe? – somos tambem seres de um mundo sem fronteiras. É pelo menos isso que ocorre quando morremos e deixamos de pertencer a nós mesmos.”
E nessas passagens, vamos imprimindo em nós um pouco do que nos encanta ou nos espanta. E a nostalgia, que é a forma romântica de experimentar a perda, se reflete nesses ires e vires de emoção com a arte, em que reafirmamos nossas referências nacionais, pessoais.
Mas, ousando discordar do citado autor, como ainda se pode arriscar em dizer que o mundo não tem fronteiras?
12 de setembro de 2006, para meu pai.